Instrutor GuimaCaro(a) leitor(a):
O filólogo campanhense Gladstone Chaves de Melo (aqui) escreveu que os gramáticos costumam ser opiniáticos, e muitas vezes querem transformar em leis da língua aquilo que é apenas gosto ou implicância pessoal. Para resumir isso, Gladstone fez uso de uma frase expressiva — "Fulano acha, Beltrano prefere, Sicrano condena", que o REDIGIRMelhor adotou como título de um dos seus mandamentos.
Com esse Mandamento, que tem como subtítulo — “O meu gramático é melhor do que o seu” —, chamamos a atenção para os argumentos de autoridade e para as constantes divergências entre os gramáticos, fatos comuns ao normativismo linguístico — que é como se pode designar a fase por que passou a língua portuguesa no Século XIX e no início do Século XX.
Isso nos fará refletir sobre o passado da língua e ficar atentos a eventuais surtos normativistas do presente.
"Fulano acha, Beltrano prefere, Sicrano condena"Cada época tem sua gramática
O normativismo linguístico, apesar de ter sido superado pelos avanços na Filologia e na Linguística, é diariamente revivido pelos que não admitem a evolução das línguas e não sabem que as gramáticas são datadas, isto é, que “cada época tem a gramática de sua filosofia”, como nos ensina o eminente linguista francês Antoine Meillet. Isso em razão de o uso ser a norma da gramática, quer dizer, aquilo “que é corrente na linguagem dos bem-falantes, ou na prática dos literatos consagrados” é que vai naturalmente ser posto como modelo circunstancial e temporário de linguagem correta. O mais é “caturrice dos gramáticos” (Cândido Jucá, filho).
Grammatici certant ("os gramáticos vivem brigando")
Apesar de tudo isso, os zeladores do espólio linguístico normativo são turrões, e raramente desistem. Ainda hoje, estão por toda parte a proclamar sua cantilena prescritivista, sustentando-se no prestígio supostamente imperecível dos gramáticos e das gramáticas. Mas seu reinado não é pacífico, pois sobre inúmeras questões linguísticas nem mesmo os olímpicos gramáticos se entendem e vivem brigando, brandindo velhas regras, muitas anticientíficas.
Diante disso, queremos com esta Série Grammatic certant — que complementa as Séries LOUÇANIAS DE GRAMATIQUICE e SÓ PRA CONTRARIAR — demonstrar a fatuidade das condenações terminantes, categóricas, irrecorríveis, em matéria linguística, mormente quando fundadas em regras urdidas ao tempo do normativismo linguístico.
Por essas e por outras, há sobrante razão para que nós — os mortais usuários — possamos manejar a língua mais livre e relaxadamente; de forma equilibrada e correta, é evidente, mas fora da camisa de força que o
purismo militante pretende impor. É esse o espírito desta Seção.
CASO Nº 1 - Quando a aritmética dita as regras da gramáticaVejamos um exemplo, envolvendo a palavra distância.
Com a palavra distância "a" terá ou não acento grave (ocorre ou não crase):
a) Se a distância for determinada, conhecida, à com acento:
• Ponha-se à distância de um metro.
• Vejo à distância de vinte metros.
• Acerto o alvo à distância de quatrocentos metros, mais ou menos.
b) Se a distância for indeterminada, a sem acento:
• Tu deves estar a pouca distância
• Coloque-se a distância.
• Vejo tudo muito vago, a distância.
Esta prescrição consta do Dicionário Gramatical, de Cândido de Oliveira (Editora FTD, São Paulo, s/d, pág. 254), mas também é corrente nas gramáticas e colunas de língua portuguesa. Veja-se mais este exemplo:
No Houaiss, 1a. edição, 2001, lê-se no verbete distância:
a distância ou à distância 1 de longe; de um ponto distante;
2 ao longe; em um ponto distante
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GRAMÁTICA O uso gramatical baseado nos clássicos da língua é de que o sintagma a distância, quando a distância de que se fala não é especificada, se grafe sem crase: viram algo movendo-se a distância; e com crase, se a distância é especificada: o portão ficava à distância de 4 m; sugere-se, porém, mesmo no primeiro caso, usar da crase, quando a sua falta comprometer de algum modo a clareza da frase:
Júlio da Cal, do site de língua portuguesa de Portugal (http://ciberduvidas.sapo.pt/php), respondendo à pergunta: — Como se escreve: ensino a distância ou ensino à distância e porquê? —, anota:
Ensino a distância parece-me ser a forma mais correcta de dizer. Também dizemos cursos por correspondência e não pela correspondência, trabalhos de casa e não da casa. Fazemos, assim, uma caracterização do tipo de trabalhos de cursos, de ensino.
Já será diferente, se quisermos indicar uma distância: "A casa de meus avós ficava à distância de cem metros". À = contracção da preposição a com o artigo definido feminino singular a justifica-se pela determinação que fazemos da distância, o que não acontece com o ensino,
para o qual tal determinação não interessa.
Mas há controvérsias...
Em Adriano da Gama Kury (Ortografia, Pontuação, Crase – Fename/MEC, 1982, pág. 111) encontramos:
Muitos gramáticos, sem levar em conta o uso bastante generalizado, querem que a locução à distância, quando indeterminada, se escreva sem acento; este só caberia, a seu ver, quando a locução viesse determinada, p. ex., “à distância de um metro”, ou como escreveu Machado de Assis: “à distância de um fio de cambraia” (Brás Cubas, cap. CIII).
Não tem fundamento essa distinção: esquecem esses gramáticos que à distância equivale a NA distância (onde aparecem preposição e artigo):
“Um relógio, NA distância, bateu dez horas.” (Afonso Schmidt, Aventuras de Indalécio, São Paulo, Clube do Livro, 1951, p. 141.)
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“O pai manda um grito/ Tão NA distância, tão longe,/ Que o corpo do mundo treme.” (Murilo Mendes, “O Concerto”.)
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Vejam-se alguns exemplos, em bons escritores, de à distância:
De Rui Barbosa:
“Destes cimos... o Colégio Anchieta nos estende À distância os braços (Discurso no Colégio Anchieta, Rio, 1953, p. 7.)
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De Mário Barreto:
“A metátese... é em geral provocada por uma atração À distância.” (Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, 2a. ed., Rio, Livr. Francisco Alves, p. 47.)
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De Guimarães Rosa:
“E o povo encheu a rua, À distância, para ver.” (Sagarana, 4a. ed., Rio, Livr. José Olympio, 1956, p. 373.)
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Como se vê, mesmo diante de fatos linguísticos tão banais, grammatici certant...
E o REDIGIRMelhor, como fica?Antes de explicitar a sua posição, o REDIGIRMelhor pergunta:
Qual foi a inspiração dos ditadores de regrinhas para engenhosamente distinguir “distância determinada” de “distância indeterminada”? Por que criar mais uma regra, a rigor, inútil? Qual é o fundamento para tal distinção? Parece ser aritmético...
Houaiss refere que a regra surgiu do uso feito pelos clássicos. Não parece, pois Kury argumenta que os gramáticos criaram a regra “sem levar em conta o uso bastante generalizado” do acento. E observando mais atentamente os clássicos — que transcreve —, opina que se grafe sempre a crase naquela locução.
O fato, porém, é que o conhecimento de tais regrinhas é exigido em concursos públicos e vestibulares, e podem decidir a sorte de um candidato. Ou, ainda, o que pode ser pior do que “levar pau” num certame qualquer: ao descumprir tal regra pode-se levar uma “paulada” de um patrulheiro gramatical fundamentalista, desses muitos que estão sempre a espreitar escritores não acautelados...
Contudo, melhor do que ficar discutindo regras de gramática estabelecidas por fundamentos aritméticos será quando, no REDIGIRMelhor pudermos fazer como Millôr Fernandes que simplesmente aboliu a crase de seus escritos por considerar que hoje ela só subsiste no português de Portugal... (Coluna Língua Viva. Jornal do Brasil. 11.08.2002)
Mas, como não podemos ainda permitir-nos o capricho do Millôr, e não obstante nossa declarada simpatia por tudo o que é da lavra de Adriano Kury, no REDIGIRMelhor temos de adotar a tal regrinha de inspiração aritmética, que está inserta na Seção Normalização Textual do REDIGIRMelhor.