Ilustração: Capas de livros de literatura e sobre literatura brasileira. Montagem
Instrutor Guima
Neste Módulo A10 Textos para estudos, vão textos clássicos tomados pelo REDIGIRMelhor como fonte de inspiração e outros textos utilizados para estudo, análise ou exercício de língua portuguesa.
Confira.
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Neste tópico, transcrevemos alguns textos clássicos, tomados pelo REDIGIRMelhor como inspiradores de estudos aqui disponibilizados.
A gramática matrimonial do coronel
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão.
Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarces de pretexto — para umas certidõeszinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada nesta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca ouviu? — que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
— É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
— Muito bem! Continuou o coronel, em tom mais sereno. Ama, então minha filha e tem a audácia de o declarar. Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
— ... é casar! concluiu, de improviso, o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:
— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora! ...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
— Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
— Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
— Laurinha, quer o coronel dizer...
O velho fechou de novo a carranca.
— Sei onde trago o nariz, moço. Vossuncê mandou este bilhete à minha Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher.
— Oh, coronel ...
— ... ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.
— Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa — quem fala, e neste caso vossuncê; da segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de que se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretaria uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos dizia, teatralmente:
— Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica. (...)
(Monteiro Lobato. Negrinha — O Colocador de Pronomes — Edit. Brasiliense, 1978, pp. 79/80)
A vírgula não foi feita para humilhar ninguém
Era Borjalino Ferraz e perdeu o primeiro emprego na Prefeitura de Macajuba por coisas de pontuação.
Certa vez, o diretor do Serviço de Obras chamou o amanuense para uma conversa de fim de expediente. E aconselhativo:
— Seu Borjalino, tenha cuidado com as vírgulas. Desse jeito, o amigo acaba com o estoque e a comarca não tem dinheiro para comprar vírgulas novas.
Fez outros ofícios, semeou vírgulas empenadas por todos os lados e foi despedido. Como era sujeito de brio, tomou aulas de gramática, de modo a colocar as vírgulas em seus devidos lugares. Estudou e progrediu. Mais do que isso, saiu das páginas da gramática escrevendo bonito, com rendilhados no estilo. Cravava vírgulas e crases como ourives crava as pedras. O que fazia o coletor federal Zozó Laranjeira apurar os óculos e dizer com orgulho:
— Não tem como o Borjalino para uma vírgula e mesmo para uma crase. Nem o presidente da República!
E assim, um porco-espinho de vírgulas e crases, Borjalino foi trabalhar, como escriturário, na Divisão de Rendas de São Miguel do Cumpim. Ficou logo encarregado dos ofícios, não só por ter prática de escrever como pela fama de virgulista. Mas, com dois meses de caneta, era despedido. O encarregado das Rendas, funcionário sem virgulas e sem crases, foi franco:
— Seu Borjalino, sua competência é demais para repartição tão miúda. O amigo é um homem de instrução. É um dicionário. Quando o contribuinte recebe um ofício de sua lavra cuida que é ordem de prisão. O Coronel Balduíno dos Santos quase teve um sopro no coração ao ler uma peça saída de sua caneta. Pensou que fosse ofensa, pelo que passou um telegrama desaforado ao Senhor Governador do Estado. Veja bem! O Senhor Governador.
E por colocar bem as vírgulas e citar Nabucodonosor em ofício de pequena corretagem, o esplêndido Borjalino foi colocado à disposição do olho da rua. Com uma citação no Diário Oficial e duas gramáticas debaixo do braço.
(José Cândido de Carvalho. Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon)
As citações e/ou transcrições de passagens de textos, com a devida identificação de autor/editor, foram feitas para fins de estudo da língua portuguesa, e cada uma delas está vinculada, em alguma Página desta Coletânea REDIGIRMelhor, a um exercício, ou a um teste, ou a uma análise de texto, ou a uma reflexão linguística.